people, men, women

Autora: Aleciane Moreira

Introdução
Falar em democracia implica, a priori, em reconhecer seus diferentes conceitos (Coutinho, 2008) a partir de diferentes concepções. Esse autor reúne pensamentos de diversos autores, como La Rochefoucauld, Rousseau, Tocqueville, Lukács, Kant, Schumpeter acerca do que é democracia, e se posiciona no sentido de que “a definição minimalista de democracia é uma mera ideologia, cujo objetivo principal é esvaziá-la do caráter subversivo e anticapitalista que, tanto teórica como praticamente, caracterizou-a desde sua origem” (pág.14).
Ao analisar esse trecho de Coutinho (2008), pode-se depreender certo descontentamento com o que se vem apregoando sobre a democracia. Mas afinal, o Brasil é um país democrático, no sentido de participação efetiva da população na construção da coletividade? No decorrer deste texto talvez sejamos capazes de formular uma resposta a esse e outros questionamentos acerca da sociedade brasileira.
Na perspectiva de Tocqueville, por exemplo, há uma grande revolução democrática em nossa sociedade. Ele faz alusão aos acontecimentos históricos como precursores da democracia: cruzadas, guerras, instituição de comunas, descobertas das armas de fogo, surgimento da imprensa e do protestantismo, dentre outros. Ele acredita que o estabelecimento da democracia na sociedade será duradoura, haja vista não experimentarmos outras formas de governo capazes de fazermos comparações; “e querer reter tal forma é ir contra Deus”, uma vez que as nações democráticas são consideradas cristãs. Ele defende que na América a revolução democrática foi mais rápida que nas demais nações, bem como se realizou na materialidade, em detrimento das leis.
Tocqueville, então, concebe a democracia como uma sociedade em que todos, vendo a lei como obra sua, amariam e a ela se submeteriam sem custo; em que, por ser a autoridade do governo respeitada como necessária e não como divina, o amor que teriam pelo chefe do Estado não seria uma paixão, mas um sentimento ponderado e tranquilo. Ele acredita numa sociedade melhor e mais justa, a partir desse modelo. Mas como todos os fenômenos sociais, isso tem um ônus: “o prestígio do poder real dissipou-se, sem ser substituído pela majestade das leis; em nossos dias, o povo despreza a autoridade, mas teme-a, e o medo arranca mais do que davam outrora (na aristocracia) o respeito e o amor.”
Neste sentido, a diminuição das distâncias entre rico e pobre parece ter ampliado o ódio entre essas duas classes, emergindo a inveja, a disputa de poder; o pobre ainda carrega muitos preconceitos de seus pais, de suas crenças etc. Ademais, os desejos, as paixões individuais de cada um parecem impotentes, já que cada um é livre. O que ele questiona é que a sociedade destruiu a aristocracia sem conhecer o que poderia ser uma alternativa – a democracia.
Estranhos acontecimentos, contudo, perpassam nessa sociedade democrática: falsos moralismos entre religiosos, individualismo, independência, o homem com bons ideais sendo repudiado pela sociedade, enfim, cada um por si. Destarte, o autor questiona: “onde estamos, pois?” Pode-se dizer que tudo é muito relativo, levando em consideração esses aspectos.
A obra de Tocqueville, “A democracia na América” nos conduz a uma visão diferenciada do que seria a democracia na perspectiva comum. Para Tocquevile, a sociedade democrática é uma ameaça à liberdade individual, já que a democracia deve ser a possibilidade de construção do interesse coletivo, embora o interesse individual possa pressupor o coletivo, como postula Smith.
Podemos observar também que a democracia se constrói a partir da força local, mas que nem sempre essa força é autônoma, podendo advir do centro; por isso essa liberdade individual pode ser o fenômeno mais caro da humanidade. Uma sociedade igualitária pode ser muito conservadora, o que explicaria, talvez o perfil conservador do americano médio. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o coletivo não é a soma das partes e que as relações primárias nem sempre pressupõem a democracia.
Limites e possibilidades da democracia ou, talvez, da democratização no Brasil
Diante de toda essa complexidade que cerceia o campo da democracia, ainda se propõe um conceito moderno, a poliarquia (Santos, 1993), que viria a enfrentar as crises de governabilidade, crises estas entendidas tecnicamente pela literatura especializada (Karl von Vorys, 1965, citado por Santos, 1993) como a incapacidade de resposta às inúmeras demandas sociais. Mas, corroborando com Santos (1993), o que há de excesso no País não são as demandas, e sim, as regulações, as leis, os comandos, as diretrizes e os planos.
Ao ilustrar o Brasil, Santos (1993) argumenta que a sociedade brasileira é pacífica no sentido de negar o conflito ao invés de admitir ser vítima dele, o que ele denomina cultura da dissimulação. Essa negação diz respeito ao pouco conhecimento e à pouca renda da população, pois, segundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE) dos últimos três sensos e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) das ultimas três eleições é possível constatar que são diretamente proporcionais a renda e o nível educacional com a taxa de participação em associações e controle da agenda pública, por exemplo. Então, não se pode afirmar que uma sociedade plural pressupõe uma sociedade igualitária. Muito pelo contrário, o sistema capitalista alimenta-se da desigualdade.
Indo além, é possível observar que a poliarquia onera cada vez mais o sistema, visto que, segundo Santos (1993) quanto mais votos são necessários para um candidato se eleger, mais investimento econômico será feito. Complementarmente, a penetração do Estado no mercado constitui-se mais do mesmo, isto é, a abundante regulação emergem ineficiências, privilégios, barreiras à entrada de novos mercados.
Neste sentido, essa população subordinada à dinâmica de acumulação material, característica marcante do capitalismo selvagem, que usa parcimoniosamente o voto, sem querer participar de associações comunitárias ou organizações de partidos, é quem nega o conflito. Santos (1993:100) chega a uma possível explicação a essa inercia: “…a admissão do estado conflitual impõe uma decisão sobre o que fazer, e essa decisão tem custos”. E ainda cita três possibilidades que a população teria diante de uma demanda social conflitante: conformar-se, fazer justiça com as próprias mãos e procurar as instituições estatais competentes. Esta última é a menos utilizada por descrédito dessa população marginalizada, por temer represálias, por desconhecimento, entre outros aspectos, e isso se configura no que o autor acima citado denomina de poliarquia ineficaz.
Logo, a sociedade brasileira vive, segundo Santos (1993), em um híbrido não – poliárquico (quando não damos queixa) e poliárquico (quando votamos); e embora tenha escrito isto há cerca de 20 anos, evidencia-se a sua atualidade. E nesta perspectiva, as politicas governamentais, que pressupõem uma expectativa de comportamento da comunidade, se tornam frágeis e incertas ao nível individual, pois a insegurança é imanente ao individuo da atualidade, quer em seu trabalho, quer em todas as suas relações.
A macro teoria tenta dar conta disso, quando faz alusão à mercantilização da vida nessa sociedade pós-moderna, à subordinação da sociedade ao mercado e à realização plena da mercadoria, mas ainda assim, ela recorre a outros paradigmas dos grandes clássicos para tentar entender tal contexto carregado de complexidade.
Zygmunt Bauman (2004), em seu livro “Amor Líquido” também discute a fragilidade das relações humanas na pós-modernidade, o que vai ao encontro da premissa de que o privado se sobrepõe ao público, ou seja, as pessoas preferem isolarem-se a acreditarem na vida pública, na justiça, nas “belas” leis. Trata-se de uma cultura cívica predatória hobbesiana. Será possível, então, uma mudança?
Em paralelo, Nogueira (1998) faz um passeio pelos desafios das mudanças em todos os aspectos, sobretudo no político. Mudar implica em enfrentar desafios, sair da zona de conforto, muitas vezes escamoteando o passado, e como tem consequências incertas, as pessoas estão mais propensas a legitimarem o presente, ao invés de criticá-lo. Mas esse autor pontua que não dá para diluir o passado da memória do passado e do presente, ele subsiste e “converte-se em estímulo para que se descubra a história como um processo de mudança direcional, desenvolvimento ou evolução” (p: 259).
A burocracia de Weber também se constitui num entrave à mudança, segundo Nogueira (1998), “quando posta na liderança de processos orientados de mudança, qual seja, a de aprofundar a separação entre governantes e governados e a de entrar em atrito com a política e a democracia”.
A modernidade tenta caminhar em direção oposta ao Estado, mesmo sabendo, ou não, que, segundo Deutscher (1970) citado por Nogueira (1998), “o Estado é a carga que oprime a sociedade e também é o anjo protetor da sociedade, sem o qual ela não pode viver”. Apesar de Deutscher ter escrito isso há mais de 40 anos, pode-se constatar sua atualidade; e a nossa modernidade, é fácil perceber, é extremamente conservadora. A tentativa de transição para essa suposta modernidade parece beneficiar apenas às minorias, pois é notória a ausência de iniciativas populares e da ativez dos postulados e ações da esquerda que foram legítimas e positivas outrora, não obstante o seu extremismo e sua estadolatria.
Nogueira (1998) pontua que estamos vivenciando uma revolução passiva, e recorre muito ao pensamento de Gramsci, o qual defende a não passividade e a democracia na base da estrutura política. Luiz Werneck Viana (1988) citado por Nogueira (1998) também coaduna com a premissa de que a hegemonia burguesa somente admite o moderno para salvar uma tradição. Então o que se torna evidente aqui no Brasil é a persistência de um autoritarismo disfarçado em democracia generalizada como valor universal, sem, contudo, ter espaço de educação política do povo.
Institucionalmente falando, é obvio que o patrimonialismo e o regime autoritário romperam-se em detrimento do regime democrático. Mas o que se observa é que as práticas da globalização neoliberal impõem o império do mercado e suspendem a reprodução das conhecidas formas de ações políticas, passando a revigorar os comportamentos individualistas, possesivos e predatórios, frutos do já então mencionado neste texto “privado sobre o público”, característica imanente da denominada pós-modernidade.
Reafirmando o exposto, Nogueira (1998:281) indaga:
Como pensar e praticar a democracia, em meio a tanta mudança, velocidade e informação, especialmente quando nos lembramos que a democracia requer um sujeito (o cidadão) capacitado para ponderar e assim poder suportar seu atomismo egoísta?
Essa pergunta sintetiza a crise da política a que estamos passando, esta entendida pelo autor supramencionado como o domínio do mercado sobre o Estado, o enfraquecimento das instituições e da cultura da “solidariedade”. Tem-se, ademais, o que Boaventura de Sousa Santos (2013) denomina em seu livro “E se Deus fosse um Ativista dos Direitos Humanos” de zona de contato entre o passado e o presente, com a desagradável sensação de perda do futuro.
Sabiamente, Nogueira (1998) expõe que a globalização está associada diretamente à mercantilização da vida, à conversão das pessoas em sujeitos aquisitivos, definidos tão somente pela posse de necessidades econômicas, reduzindo a democracia ao rito eleitoral. Corroborando ainda com esse autor, o mesmo salienta que “precisamos é encontrar os meios de pôr em curso uma prática cotidiana que invada as instituições mas vá além delas e que dedique a desmascarar criticamente o cinismo, as mentiras e as injustiças, a arrogância dos poderosos e a frieza dos tecnocratas”. Parece utópico, mas vale a pena refletir tal possibilidade, ainda que as teorias não deem conta.
Características estruturais da realidade brasileira
Fazendo um passeio pela sociedade brasileira, é possível constatar situações as quais tentam se aproximar da democracia, como a Lei do Acesso a Informação (12.527/2011), a qual permite aos cidadãos fiscalizarem as ações do Estado. Aliado a isso, tem-se a accountability, que pode ser entendida como responsabilidade, obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, pressupondo, assim, um aumento dessa democracia em evidencia – a participativa. Esse termo, embora antigo, foi utilizado pela primeira vez no Brasil pela Anna Maria Campos concomitantemente à elaboração da Constituição Federal (CF) de 1988. Ressalta-se que quando ela começou a escrever sobre tal conceito, era um contexto diferente do qual seu artigo foi publicado, em 1990, o que implica em novas possibilidades de conceitualização.
Questiona-se se a accountability pode ser efetivamente traduzida para o português de forma consolidada, mas ainda não se sustenta uma resposta contundente que assegure a sua utilização na essência, conforme seu significado extraído dos dicionários ingleses (Michaelis). Schedler (1999:13), citado por Pinho e Sacramento (2009), argumenta que esse termo ainda permanece inexplorado e evasivo, o que atenua o desconforto de Campos (1990), já que não é somente no Brasil que esse termo suscita complexidade.
Traçando um paralelo com a democracia participativa como possível redutora das desigualdades e facilitadora do exercício da cidadania, dos direitos e dos deveres das pessoas, pode-se observar que a accountability não está em um terreno fácil, já que, corroborando com Przeworski (1998:61) citado por Pinho (1998), os cidadãos teriam que saber se os governos estão ou não estão atuando na defesa dos interesses públicos e poderiam lhes aplicar as sanções apropriadas, de tal modo que os políticos que atuassem a favor dos interesses dos cidadãos fossem reeleitos e os que não o tivessem feito perderiam as eleições. Essa posição do cidadão seria a ideal, embora utópica, mas a utopia pode ser a construção do possível, como bem postula Boaventura de Sousa Santos em suas obras, especialmente em “As epistemologias do Sul”.
Neste sentido, pensar a democracia sob a égide da premissa da accountability parece ser uma busca diária, talvez incessante, e passível de muitas críticas. Mesmo sendo o objetivo da democracia o melhor possível à sociedade não se pode escamotear a sua fragilidade, pois diante do nosso modelo de desenvolvimento fica impossível ter acesso a todas as informações, aliás, os governos lutam contra isso, pois podem ficar à mercê do julgo social de suas ações.
A premissa é de que a CF/88 assegure o direito à impetração da denominada ação popular, instrumento fundamental para o exercício da accountability, uma vez que, além de viabilizar a defesa dos interesses públicos, destaca a possibilidade de o cidadão comum agir em defesa do interesse coletivo, conforme afirma Mota (2006). Tal premissa foi reafirmada com o advento do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), em 1995, cuja administração burocrática foi substituída pela gerencial, que é a atual, mesmo com muitos resquícios burocráticos e também patrimonialistas.
Destaque-se aqui que antes do PDRAE, houve uma importante reforma da administração pública no Brasil, nos anos 30, denominada de DASP – Departamento de Administração do Serviço Público -, cuja premissa era romper com o patrimonialismo e implantar uma burocracia do tipo weberiana no Brasil. Alcançou-se, porém, essa burocracia, mas sem conseguir resistir ao poder histórico do patrimonialismo, por exemplo, os cargos eram criados paras as pessoas e não o contrário (PINHO, 1998).
Observa-se que essa hibridez do patrimonialismo com a burocracia continua a existir em nossa sociedade, daí a constatação de que somos mesmo um País conservador; não se têm novas decisões políticas, tudo é mais do mesmo.
Outra consequente reforma decorrente do DASP, foi a criação do Decreto Lei 200, o qual formulava reformas das estruturas do Estado e dos procedimentos burocráticos. Foi a partir desse Decreto que se criou administração indireta, para promover a descentralização de alguns serviços da administração direta, sendo a esta vinculada.
Pinho (1998: 67) foi muito feliz ao pontuar que:
Em outras palavras, esta concepção estaria marcada pela ideia de que o mundo da administração indireta seria impermeável às características estruturais da sociedade brasileira onde ela, a administração indireta, está também inserida. Mais especificamente, este Estado paralelo estaria isento da ação de interesses clientelistas, populistas, enfim, do patrimonialismo. A confirmar esta hipótese, estaria sendo assumido que seria possível construir uma realidade “pura” a partir de uma mesma matriz “impura”. Esta hipótese não se confirmou, pior que isto.
Depreende-se que essa reforma reforçou a centralização regulatória do Estado. Segundo Pinho (1998), foi no governo de Sarney que se retomaram os parâmetros ditos democráticos, mas não capazes o suficiente de deslocar o poder decisório da instância executiva para a parlamentar-partidária, como propunha Weber.
Foi no governo de Fernando Henrique Cardoso, no entanto, que o DASP foi transformado em MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – cuja ênfase era a implantação de uma administração gerencial capaz de atender aos interesses públicos. Essa administração gerencial, como dito em linhas anteriores, é a atual, porém carregada de resquícios patrimonialistas e burocráticos, o que nos faz refletir a grande caminhada que se tem pela frente para estruturar a realidade brasileira.
Neste sentido, Pinho e Sacramento (2009) constatam a existência, no Brasil, de marcos legais que chamam a atenção para a necessidade da criação de mecanismos que possibilitem o exercício do controle político do Estado pelos cidadãos, e ainda afirma que isso terá reforço “se a sociedade civil estiver consciente de seu papel e os esforços forem mobilizados e utilizados com tal propósito” (pág. 1355). Essa sociedade civil é entendida aqui, à luz do pensamento de Dagnino (2002), como a forma por meio da qual a sociedade se organiza politicamente para influenciar a ação do Estado, indo ao encontro do postulado democrático.
Porém, uma análise dessa aliança entre a sociedade civil e a consequente democracia foi feita por Sorj (2006) e Santos (2006) citados por Pinho e Sacramento (2009), os quais identificaram que, ao contrário do que se presumia, houve um desaparecimento das organizações populares originalmente constituídas na sociedade civil em detrimento de organizações com fins econômicos. Mas para Pinho e Sacramento (2009) isso não é algo desalentador, visto que a própria sociedade é a responsável por recriar novas organizações com fins de exercer controle político do governo. Contudo, o que está em jogo é a efetividade desse controle, haja vista o cidadão brasileiro não ter a capacidade legal de impedir candidatos corruptos de se reelegerem.
Pensando em efetividade democrática, é oportuno mencionar a pouca expressividade que o cidadão possui frente à globalização hegemônica. Esta não pressupõe integração equitativa, e sim, uma assimetria de poder (GRAY, 1999). Os mercados globais impõem uma modernização forçada às economias em toda parte, e as globalizações anteriores, que contribuíam ao fortalecimento do Estado-Nação, hoje o enfraquece.
Mas não se pode deixar de mencionar melhorias, mesmo que frágeis, da democratização concebida pela accountability desde a sua concepção em 1988. A descentralização do poder central para os locais se constitui num progresso na perspectiva desenvolvimentista socioeconômica, não obstante alguns autores, como Tocqueville, defender que a democracia na esfera local é uma ameaça à liberdade individual, pois nem sempre as relações primárias pressupõem a democracia, pelo contrário, podem se aproximar mais do paternalismo, haja vista a proximidade das pessoas com o governo local, o que pode facilitar benesses.
Apesar de tal contraponto, o orçamento participativo, a constituição de conselhos municipais, a disposição das contas dos municípios para apreciação de qualquer contribuinte, a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), da Controladoria Geral da União (CGU), do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), dentre outros, tudo isso é um avanço democrático.
Cumpre reafirmar que a democracia no Brasil é imperfeita e adjetivada por O’Donnell (1988), citado por Pinho e Sacramento (2009), de delegativa, por exemplo, mesmo ocorrendo eleições livres, o vencedor do processo eleitoral está autorizado a governar da maneira que lhe parecer conveniente, não necessitando atuar em conformidade com o prometido durante a campanha eleitoral, sacrificando, assim a accountability. Outros estudos corroboram essa situação, como a pesquisa tipo survey de Coelho (2000), citado por Pinho e Sacramento (2009), realizada em 1998, a qual concluiu que os brasileiros preferem a democracia a qualquer outro tipo de governo, mas se necessário, aceitam o recurso do líder autoritário.
Diante do exposto, fica fácil perceber que condições mais estruturais são difíceis de serem transformadas em curto prazo, quiçá em médio. Corroborando com Pinho e Sacramento (2009), o que se observa, em verdade, nas últimas duas décadas é a convivência de um processo de mudança de valores no Brasil que favorecem a accountability, expressos nas várias organizações já mencionadas (CGU, OP, conselhos, ONGs ligadas à transparência, papel da imprensa etc.).
Retomando a pergunta lançada no início deste texto, se podemos considerar o Brasil como um País democrático, é um tanto complexo afirmar positivamente, levando em consideração todos esses pressupostos, mas por outro lado, pode-se conceber que é possível, ainda assim, construir um sistema mais democrático, inclusivo, participativo.
Considera-se ainda oportuno mencionar que vencemos o autoritarismo como instituição, mas as suas mazelas permanecem em nosso meio, nos levando, sem dúvida a um fundado pessimismo. Outros conceitos também continuam obscuros em nossa história, como o de nação (IANNI, 1994, citada por PINHO, 2009).
O que nos resta claro, portanto, é que estamos diante de um processo de transição lenta e gradativa, que talvez a nossa geração presente não alcance o exercício de um conceito claro e efetivo de democracia, de accountability e de nação. Trata-se, assim, de uma mudança de caráter secular, mas que não se pode deixar de acreditar na utopia de que ela irá acontecer, afinal, como já mencionado em linhas anteriores, a utopia pode ser a construção do possível.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
DAGNINO, Evelina. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, fev./abr. 1990.
MICHAELIS. Dicionário prático inglês-português/português-inglês. São Paulo: Melhoramentos, 1988.
MOTA, Ana Carolina Yoshida Hirano Andrade. Accountability no Brasil: os cidadãos e os seus meios institucionais de controle dos representantes. Tese (Doutorado) — USP, São Paulo, 2006.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. As possibilidades da política: ideias para a reforma democrática do Estado. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
PINHO, José Antonio Gomes de. Reforma do aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonialismo. Revista Organizações & Sociedade, Salvador, n. 12, p. 59-79, 1998.
PINHO, José Antônio Gomes de & SACRAMENTO, Ana Rita. Accountability: Já podemos traduzi-la para o português? RAP. Rio de Janeiro 43(6): 1343-1368, nov/dez, 2009.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Razões da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
SANTOS, Boaventura de Sousa. E se Deus fosse um Ativista dos Direitos Humanos. São Paulo: Cortês, 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010

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